30 de jun. de 2011

Translucidez




O casarão, a quem olhasse à primeira vista, encontrava-se inteiramente na escuridão. As dezenas de janelas de ferro frio abrigavam em si a intensa cor da noite, exceto pela última delas, a mais alta - visão minuciosa, que continha em si uma nesga de luz bruxuleante. E no interior daquele cômodo, à luz de três velas, ele escrevia.


***


... Corria como nunca o havia feito, deixando atrás de si o grito insuperável das noites sombrias, que somente uma noite como aquelas poderia proferir. Sua respiração era dificultada pela densidade do ar naquela altura, mas nem a escassez de oxigênio a fazia parar. Nada a faria.



Os agouros noturnos a perseguiam em forma de grito, mote que a fez parar, colocar as mãos na cabeça, massagear a têmpora por um breve instante, com os olhos castanhos fechados, tentando sentir qualquer coisa que a livrasse daquela sensação ruim de estar sendo seguida, de estar confrontando a realidade, de estar cansada por remar contra a maré.



***


Prazeroso, ele conseguiu extrair sua mente do papel por um instante, sentindo fluírem por seu corpo todas aquelas energias que ele já conhecia, e deu uma olhada narcisista no calo em sua mão, deixando a pena respingar levemente no papel onde escrevia. Levantou-se da cadeira, afastou-se da escrivaninha e foi até a janela, pensando ter ouvido um som estranho da pequena reserva florestal que margeava sua casa. Feliz por notar na noite a magia que queria transcrever, tornou a mergulhar a pena no tinteiro.


***


... Um corvo crocitou ao longe simultaneamente ao momento em que um espinho penetrava-lhe a sola calejada dos pés, fazendo com que ela se sentasse num tronco oco, vendo o sangue escorrer lentamente do pequeno orifício. Eu mereço isso, pensou. EU MEREÇO TUDO ISSO! E com tal convicção, abraçou a dor que a noite lhe afligia com a mesma afeição com que se abraça um amigo íntimo, e sentindo-se mais forte, recomeçou a caminhar, já podendo ver ao longe as pilastras brancas da entrada do paraíso. Ou inferno. Um lobo emitiu um uivo triste, e aquela nuvem enorme e cinza insistia em manter o luar por detrás de si, alimentando-se de sua luz para parecer mais forte, mais intensa.



***


Um arrepio percorreu-lhe o corpo, quando ouviu um uivo forte saindo da noite, invadindo a janela do cômodo onde se encontrava, e eriçando seu corpo por inteiro. Levantou-se pela segunda vez, o copo de scotch em mãos, e encaminhou-se até a janela. A noite permanecia intocável como uma pintura, mas o rapaz tinha a sensação de que algo se movia ali. Chacoalhou a cabeça, tentando afastar a imagem dela, que novamente começava a lhe acossar. Levantou por um instante a foto na estante, recolocando-a virada para baixo após uma breve admirada. Aquela não era uma lembrança que lhe fazia bem. Freou o ímpeto egoístico que lhe surgia com mais uma golada de scotch, tomou a pena novamente em mãos e sentiu a mente se distanciar novamente, enquanto a tinta acariciava o papel.


***


...O momento último de percepção pareceu-lhe afagar a alma, e a caminhada pareceu transcorrer, dali para frente, como se certa fosse, como se a guerra com os astros fosse incomum e necessária. Ao finalmente conseguir ver os contornos da casa, apertou a carta dele contra o peito, sentindo as lágrimas já começarem a brotar. Não. Não iria fraquejar agora. Durou dois anos sua briga interior, mas alguém, enfim, havia vencido. Empurrou forte o portão de ferro da entrada, encarando de igual as criaturas da noite que ali se encontravam, estátuas sem rosto, cinzas e sem luz, todas com o olhar ferino indagando sua presença ali.



Conhecedora do local, retirou das vestes o pedaço de metal que havia trazido consigo, e traçou um círculo ao redor de si, delineando em seguida traços disformes dentro do mesmo, percorrendo toda a extensão da terra, passando por sob seus pés, mas não excedendo o espaço circular, que agora recebia uma fina cortina de luz.



Ao som dos agouros da noite, deixou-se movimentar sem qualquer coordenação, enquanto lentamente recebia marcas azuis por todo o corpo, sentindo cada pedaço de si esquentar na medida em que o sangue fluía mais rápido. E ali, no auge do fluxo sanguíneo, retirou o espinho que lhe mostrara a dificuldade do caminho, e que ela havia guardado, fazendo com ele um pequeno furo na palma da mão direita, pressionando-a em seguida contra a terra fria. Girou as mãos até onde a flexibilidade de seu braço permitiu, e ao erguer os olhos, viu cada estátua ganhar vida, abrir as asas e subir tão alto quanto as nuvens, deixando o caminho finalmente livre.



Levantou-se com dificuldade, ergueu o pescoço à última janela da casa, e notou a luz que ali bruxuleava, em contraste com toda a imensidão sem cor que cobria o resto da visão.



***


O suor de suas mãos passava a deixar marcas em seu manuscrito, motivo que o fez parar pela terceira vez. Releu o que já tinha escrito até o momento, sentindo uma estranha familiaridade com aquilo tudo. Não se recordava de onde tinha acendido aquela inspiração, mas tinha certeza de que já a conhecia.


A estranheza do calor que lhe subia naquela madrugada fria fez com que ele enchesse o copo novamente, sentindo que o álcool já influenciava em seu discernimento. A pintura na parede atrás da escrivaninha, sua preferida, que retratava a constelação de Lynx - o Lince, parecia delinear-se num enorme Lince Negro, fitando-o com seus olhos amarelos e censurosos, antevendo o ponto de exclamação do grito de sua alma.


Voltou os olhos para seu manuscrito, que parecia emitir uma energia incomum, sugando sua mente para dentro de si, fazendo com que suas mãos voltassem a, involuntariamente, traçar linhas e formar palavras, que eram sugadas uma a uma para dentro daquela folha de papel. E a pena voltou a cortar o papel.


***


... Seu corpo inteiro tremia à medida em que se aproximava daquela enorme porta. Será que ele lhe perdoaria? Será que toda aquela caminhada, todo aquele sacrifício, valeria realmente a pena? Ele a amara tanto, e ela fizera tão pouco caso. Tinha realmente o direito de estar ali, naquele templo, reclamando um amor que nem sabia se ainda existia? Estaria ela agindo corretamente ao tentar fazer resgatar um sentimento que ela sabia ter existido, e que a arrebatara a ponto de trazê-la até ali?



Sem pensar tanto, para não ter a chance de desistir novamente, levou sua mão direita à porta, apertando a campainha ao passo em que sentia o medo do erro invadir-lhe...



***


Foi extraído novamente de seu texto ao pensar ter ouvido o som da campainha em sua casa, e foi então que finalmente percebeu. Releu o manuscrito pela última vez, incrédulo, entendendo finalmente o que se passava ali. Não estava criando um texto, estava simplesmente expressando, por meio de uma “meia-ficção”, o que ele queria que acontecesse em sua vida. Via ali tudo o que queria ouvir de seu antigo amor, tudo o que desejava que acontecesse, numa miscelânea entre a dolorosa realidade de seu sentimento incompreendido e a utopia dos rituais e dos agouros da noite.


Sentindo as lágrimas escorrerem tímidas e quentes, jogou a garrafa já vazia de seu scotch barato na parede, vendo sua esperança despedaçar-se ali, sentindo que sua alma estava quebrada em mais pedaços do que aqueles vidros que povoavam o chão do cômodo. Amassou o manuscrito com mãos empenhadas, e jogou-o pela janela, sendo a queda do papel frágil contra o atrito eloqüente do vento a última coisa da qual se lembrava antes de cair num sono profundo, insano e inconsciente sobre aquele chão desfragmentado em cacos.


Então, dormindo a sono profundo, não ouviu quando a campainha soou por mais duas vezes.




Thuan Bigonha de Carvalho

15 de jun. de 2011

Ordem e Progresso.




Amanhecia na Rua da Magnólia, e nem mesmo a mais otimista das senhoras, aquela que varria com os olhos a rua três vezes ao dia procurando algo sobre o que comentar - Dona Carmem - era capaz de imaginar o que ocorreria naquele Logradouro.



A Rua da Magnólia existia há pouco tempo, e suas singelas sete casas se espalhavam pela avenida de forma simétrica, uma de cada cor, completando a simetria com a igreja do finzinho da rua.



O ambiente todo, sem falar de uma forma resumida (mesmo porque não há possibilidade alguma de se resumir algo tão resumido), abrangia uma rua, sete casas, uma igreja, uma mercearia, uma banca, duas latas de lixo, uma sorveteria, uma “mini-praça” com três árvores, um canteiro e dois bancos, um correio, uma escola, um cemitério e um botequim.



Dona Francisca, moradora da imponente casa amarela, voltava da mercearia do seu Adão com uma sacolinha contendo três pães de sal e um saquinho de leite. Nhá Isaura varria a rua em frente a sua casa, preço a se pagar por ter o domicílio mais invejado da rua - a desejada casa verde -, que ficava de frente para a praça. “Vô Lauro”, morador da casa azul, já lia o jornal matinal de dentro da sua banca, enquanto sua esposa, Dona Gilda, arrumava-se impecavelmente para a missa das sete. Dona Carmem, viúva com cinco filhos, tomava seu chá da janela branca de sua casa alaranjada; enquanto seu filho mais velho, Joaquim, abria o ruidoso portão do correio que administrava desde a morte de seu pai, Antônio. Gertrudes, mulher de Seu Adão, regava cuidadosamente o jardim nos fundos de sua casa rosa, e falava alegremente ao telefone com Cláudia, sua irmã tão bem falada, que ainda nova recebeu um convite para ser atriz de cinema, indo morar na cidade grande desde então. Padre Honório, que morava nas dependências da igreja, acabava de levantar-se da primeira oração do dia, e ajeitava o local para a missa de logo mais. Heloísa, anfitriã da casa vermelha, dormia a sono pesado, enquanto seu marido, José, já servia a primeira dose de pinga para Seu Zito, o andarilho que dormia num dos bancos da praça desde que a Rua da Magnólia se entendia por rua. Jorge, morador da casa branca, assim como Heloísa, dormia, pretendendo abrir sua sorveteria apenas depois das nove da manhã.



As coisas aconteciam como todo dia, e se um quadro fosse feito da Rua da Magnólia às seis da manhã, ele se confundiria facilmente com a morosidade da realidade, que se diferenciava a cada amanhecer apenas pela quantidade de folhas que caía das árvores. Assim, tal pintura traria em si a beleza morna de uma rua pacata, a serenidade inerente à simplicidade. Até o derradeiro dia oito de agosto.



O barulho ensurdecedor interrompeu toda a magia daquela manhã ensolarada de domingo, fazendo com que toda a rua permanecesse estática por um breve minuto, e no minuto seguinte, todas as cabeças da cidade se voltavam para o centro da praça, de onde subia uma fumaça cinzenta, com cheiro de enxofre.



Dona Carmem, o olhar atento, a certeza de que aquilo certamente renderia ainda mais assunto do que sua suspeita de que Dona Gilda tinha um caso com o Padre Honório, apressou-se à beira da cratera, seguida apenas por Latido, o cãozinho que acompanhava Seu Zito em suas madrugadas na rua. Lentamente, todos os moradores da Rua da Magnólia se aglomeravam ao redor daquele incidente incomum, esperando a fumaça se dissipar para poder ver o que diabos era aquilo. Padre Honório encontrava-se ajoelhado, seu terço firmemente seguro nas mãos, e nos olhos a certeza do fim do mundo, previsto e anunciado para aquele ano por Dom Célio.



Minutos se passaram até que toda aquela tensão se fosse, e a fenda revelou finalmente sua causa: uma caixa simples de madeira, já aberta, contendo uma espécie de máquina. Após calorosa discussão, Seu Zito foi chantageado a descer e pegar o objeto, sendo a ele prometida, por isso, uma garrafa inteira de pinga. Zito desceu no ato, trazendo a caixa para o banco da praça. Do lado de fora, lia-se:




“Vcs akbam de ganhar um passaporte para o futuro. Nessa caixa tá a eficiência junto com a facilidade, pra q vcs ñ precisem mais se estressar, se preocupar, pq ela reduzirá o tempo p/ vcs, e trará mta felicidade e conforto a tds!”




Em apenas um mês, a sorveteria virou lan house, a banca virou Mc Donald’s, o correio faliu, a mercearia virou supermercado, o cemitério precisou de alguém que o administrasse e de mais dois funcionários, o botequim virou boate, a praça ganhou um policial, as árvores viraram eucalipto, Seu Zito foi preso, Padre Honório começou a aceitar em sua igreja apenas quem estava em dia com o dízimo, as casas foram pintadas todas de marrom, a escola ganhou um diretor - Sr. John -, que trouxe consigo da cidade uma imobiliária e uma indústria automobilística, Dona Carmem tornou-se prefeita, seus cinco filhos tornaram-se vereadores, Latido foi atropelado, “Vô Lauro” morreu de Leptospirose, seu filho morreu de cirrose, seu neto morreu de overdose; e a Rua da Magnólia, que num presente não muito distante cheirava a lavanda, passou a ter um cheiro acre de enxofre, inevitável fragrância do futuro.



“mas não se preocupe, você se acostuma!”, dizia todos os dias o homem, o Deus de terno e gravata que fazia sua voz reverberar de dentro daquela misteriosa caixa...




Sabia das coisas, o velho Dom Célio.





Thuan Bigonha de Carvalho

10 de jun. de 2011

Ausência em Três Atos



Ato 1 - O caminho da percepção



Era noite na Floresta dos Séculos, extensa difusão de natureza e seres míticos que se situava na subida árdua do monte que levava Oráculo de Delfos. Ouvia-se cada sussurro, cada farfalhar de folhas carregadas pelo vento, cada pio sepulcral das aves noturnas.


Era julho.


A temperatura acompanhava o ritmo da noite, ambas caindo paulatinamente, valsando ao som cálido do inverno.


Incessantes e sonoros “cracks!” faziam com que o ar congelasse, e toda a floresta prestava atenção naquela energia estranha, aquele cosmo intenso e lancinante, aquele calor tão... humano.


Os passos furtivos se dirigiam ao coração da floresta, que, onde poucos sabiam, situava-se o altar de Cronos, o Deus do Tempo. Reza a lenda que Cronos cedia o tempo, mas comia cada um dos seres que dele usufruíam, demonstrando a efemeridade que lhe é inerente, e que muitas vezes é negligenciada pelos seres viventes.


O caminho até ali era árduo, mas o rapaz, impulsionado pela força que deveras lhe sustentava, enfim o atingiu.


As árvores pareciam ter sido plantadas numa espécie de “reverência” àquele pequeno pedaço de rocha branca, abrindo um clarão inimaginável no meio de uma mata tão densa. Em torno da rocha, três pequenas flores faziam um triângulo, sendo a primeira - uma bromélia - apenas em botão; a segunda - uma rosa - na flor de sua juventude e beleza; e a terceira - um lírio - parecendo ter sido recentemente morta pelo decurso inevitável do tempo.


Foi ali que o rapaz se ajoelhou, a dobra de seu joelho se encaixando perfeitamente na rocha fria; os pés descalços, marcados pela trilha penosa, agora levemente enterrados naquela terra macia; a coluna levemente curvada para frente; os braços, caídos ao lado do tronco, expressando o mais lívido desgosto; o corpo, completamente nu, sentindo cada parte de si com a intensidade do nascer do sol; e a cabeça mirando os céus, deixando que as lágrimas percorressem toda a vereda de sua face e que se misturassem, ato final, com a magia viva do local.


Foi então que sua voz, pela primeira vez, rasgou o silêncio sussurrante da floresta, fazendo vibrar toda a energia do local no ritmo da energia que guiava seu corpo.


- NNNNÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOO!



Ato 2 - O monólogo da ira


- Eu, que nunca quis me ver do avesso, que nunca soube ter cabresto, exijo hoje dos confins do tempo uma explicação detalhada sobre o motivo de tanta ausência! Deito aqui, sob a relva fresca dos campos do desentendimento, toda minha indignação quanto à contradição da passagem do tempo, que se faz efêmera na presença, mas que se veste com a mais maléfica das intenções para frear o ponteiro enquanto os corpos se fazem ausentes!


- Ouvi dizer que é a você, Cronos, que tenho que prestar queixas, e é o que eu vim fazer!


- Não, eu não me importo nem um pouco em sofrer com a “ira dos deuses”, em sentir na pele o gosto amargo de sangue e indeferimento, em me ultrajar sobre o altar da piedade... Contanto que me ouçam! Contanto que aliviem essa chaga que corrói cada vértebra de minh’alma! Essa ausência vil que oprime meus sentidos e me faz fraquejar!


-... Eu nunca exigi nada, nunca ergui minhas mãos um só centímetro acima do limite, nunca bradei aos céus contra a autoridade aflitiva de suas decisões; mas quando senti o néctar divino jorrar dos lábios dela, simplesmente senti esvaírem-se todas as concepções todas as leis, todos os sentidos... EU SINTO! Sinto as pontas das facas que transpõem meu corpo, sinto a sede insaciável consumir meu espírito, sinto o vazio contraditório de me sentir tão cheio, SINTO A AUSÊNCIA DE METADE DE MIM, AGORA QUE CONSEGUI ME SENTIR COMPLETO!


- HAHAHAHAHAHAHAHA! Eu não venho implorar sua clemência, Deus da tirania! Venho cobrar a vida que me foi prometida! Se é verdade que vocês regem o universo, então corrija o desacerto covarde de separar duas almas que são uma só! Leve-me de volta àquela que me governa! Permita que meu encontro estatize os ponteiros! Desacelere esse engenho vil que chamas de tempo! Deixe que eu seja a unidade, deixe que meu “eu” seja!


- É só o que peço. Devolva-me a metade que pertence à minha vida, OU EU DEVOLVO A VOCÊS A METADE INÚTIL QUE TEM SIDO A MINHA!



Ato 3 - O lamúrio das horas


Dizendo isso, o rapaz abriu semicerradamente os olhos, e viu refletir em sua frente dois instrumentos reluzentes: do lado direito, uma adaga com o cabo de prata ornado em rubis, extremamente afiada, com um traçado vermelho em sua ponta que era, indubitavelmente, sangue; do lado esquerdo, um jarro de cristal contendo um líquido verde fumegante em seu interior, engalanado externamente em esmeraldas minuciosamente moldadas.


Analisou os dois objetos, e entendeu.


Pegou a adaga com as duas mãos, mirou contra o próprio peito, e desferiu um golpe certo, que permitiu a penetração do metal quente em sua pele. Sentiu então o corpo todo estremecer, quando ouviu uma melodia vinda das copas das árvores, seu tom descendo levemente pelos galhos, flutuando sobre sua cabeça. Ao olhar para cima, reconheceu o espírito de sua metade ali, pairando em luz, derramando lágrimas e canto sobre sua ferida.


Tentou então voltar atrás, retirar o objeto de seu corpo e desfazer aquela ferida que o levaria ao derradeiro momento.


Em vão.


Ali, deitado de costas sobre o lírio da morte, vendo o espírito de sua amada lamuriar as horas, extenuada, foi que ele entendeu que era impossível voltar atrás.




Pois só sentirá a leveza do tempo aquele que prezar pela vida, e se dispuser a saciar sua sede através do líquido infinito da alma.






Thuan Bigonha de Carvalho.